quinta-feira, 9 de abril de 2015

RENATA SODRÉ COSTA LEITE | Uma conversa com Floriano Martins


RSCL | Eu queria saber como começou esta sua conexão com a escrita e com a arte. Não de influências, leituras e tal, mas em que momento você escreveu o seu primeiro texto e para que foi. Você pensava em viver de arte?

FM | Eu sempre pensei em viver como algo incondicional. A ideia de viver de algo jamais me atraiu. Acho que qualquer tipo de sucesso na vida de um criador é uma consequência normal, embora não seja exatamente indispensável. O que não se pode ter, mesmo, é o sucesso como meta, como razão de ser daquilo que se faz. Eu fui copista, antes de ser criador. Copiava com guache capas de livros do José de Alencar em papel cartão, e copiava breves relatos eróticos. Neste caso eu copiava da transbordante e luxuriosa imaginação da adolescência.

RSCL | Quantos anos neste momento?

FM | Não tenho bem certeza, mas imagino que algo em torno de uns 14 anos. Meus pais haviam mudado de casa. Saímos do centro da cidade para um bairro típico de classe média ascendente. Isto mudou a minha convivência e certamente dessa mudança vieram as primeiras tentações da criação.

RSCL | Com 14 anos você já sentia o ímpeto criador? Isso estava claro na época?

FM | Quando morávamos no centro, na casa de meus pais havia uma biblioteca que era ao mesmo tempo ampla e caótica, uma mistura de tudo quanto se possa imaginar em termos de ambiente de leitura. Nesta época também se ouvia uma variedade incrível de música em casa, porque divergiam muito os gostos musicais de pai e mãe. Na escola e sobretudo a partir dos novos amigos que me foram presenteados com a mudança de bairro eu completei o caudal de diversidade dessa minha fonte de formação. Então aos 14 eu já vivia esse fervilhar de espírito que nos torna um criador. Eu podia não saber em que labirinto estava me metendo, mas certamente me sentia bem identificado com ele.

RSCL | Eu sei que seu pai gostava de jazz. Qual a música de que gostava sua mãe?

FM | Minha mãe gostava de um cancioneiro brasileiro mais sentimental, algo em torno de Sílvio Caldas e Orlando Silva. Ela tocava piano na adolescência. No entanto, em grande parte pela doença de meu irmão, ela teve uma vida muito sacrificada. Após a sua morte, eu acho que ela não conseguiu retornar de seu mundo de ausência de tudo. Coincidiu com a minha entrada na adolescência, minhas primeiras andanças por outros ares e logo em seguida ela morreu.

RSCL | Quantos anos havia de diferença entre vocês? Como ele se chamava?

FM | Seu nome era Marcos Vinicius, quatro anos mais novo do que eu. Teve problemas em decorrência do parto e perdeu por completo sua atividade motora. Isto exigiu de minha mãe dedicação integral, de modo que eu acabei sendo um pouco criado pela avó materna.

RSCL | E como foi esta criação paralela?

FM | Minha mãe representa aquele mistério maior que suponho cada um tenha em sua vida. Segundo me revela uma foto minha diante dela, em meu primeiro ano de vida, era uma mulher dotada de imensa delicadeza e transbordava alegria de viver. Eu convivi muito pouco com ela, tenho fragmentos de memória que se impõem dentro do possível. Foi uma relação interditada. Não me interessa falar em fatalidade. Esta sempre soa como um infortúnio garantido, o que é ridículo. A vida de uma pessoa está repleta de um conjunto tão variado de assonâncias e dissonâncias que é impossível prever o desdobramento até mesmo de um sorriso. Os acertos ocasionais, com ares de misticismo de quermesse, são fagulhas de uma crendice vulgar, mais do que evidências de alguma conexão entre dois pontos. De qualquer modo, eu tive uma infância repleta de incômodos inexplicáveis, todos da ordem do espaço por habitar, até hoje não sei diferir certos escassos momentos de memória se tiveram por cenário a casa de minha avó ou de meus pais. Além da curiosidade de que não tenho uma única lembrança do caminho percorrido de uma casa à outra distavam entre si umas seis quadras , se o fazia a pé ou de carro. Sequer recordo a frente dessas casas. Em uma novela que escrevi eu identifiquei na biblioteca existente na casa dos pais o portal secreto que me conduzia à casa da avó. Uma espécie de moto perpétuo de um rito de passagem. Eu ia e vinha, de um ponto a outro, ainda sem dar por conta do que viria a ser.

RSCL | Eu gostaria que me dissesse algo sobre essa ponte energética entre seu irmão e sua avó.

FM | Eu já cheguei a pensar que meu irmão sequer tenha existido. A fotografia não é uma prova da realidade. A memória menos ainda. Existir é a incógnita de uma equação cujas duas variáveis se chamam resistir e desistir. Que não caiba dúvida quanto à fatalidade do personagem que cada um de nós representa na vida, não sei. Acho que a formulação está errada, dado que sempre que não coincide com o estabelecido crucificamos o pensador e não o pensamento. Eu me sinto impregnado de meu irmão e de minha avó, porque eles de algum modo representaram o papel de pai e mãe, mesclando as impossibilidades de cada função. Já sei, é como salpicar estrelas em um céu nublado. Mas não é fácil acordar diariamente sem as suas referências mais primárias. Eu fui acordando assim, durante pelo menos a primeira década de vida, eu tive que tornar o mundo disciplinado por uma magia lúdica. A intuição talvez meu sentido de resistência foi redefinindo os parâmetros de minha relação com o mundo.

RSCL | Me deu vertigem ao incorporar as suas falas, vertigem em estar em seu lugar, em ser você…

FM | …Um arrepio na alma? (risos) Eu já tive isto várias vezes. Há um momento em que a gente se ilude, achando que domina essa volúpia, esse transbordamento. A vertigem melhora quando incorporamos mais elementos a um acervo de técnicas ou quando aprendemos a lidar com a ansiedade. Houve uma época em que eu me dizia que havia algo de estratégico em tudo isto: eu lidava com tantas coisas, atirava para tantos lados, criava tantas perspectivas de trabalho, que era impossível sentir o baque das inevitáveis respostas negativas. De algum modo deu certo, pois jamais tive crise de angústia ou identidade diante das recusas de produção e/ou promoção de minha criação.

RSCL | Mas havia uma base, um ponto em que alguma referência literária lhe desperta e então você percebe que seu caminho era o de um escritor, de um poeta.

FM | A vida é brincalhona e se esconde nesses intervalos em que não se deixa sequer entrever. Creio que muito de nossas referências descobrimos ao acaso. Recordo que ali pelos 16 anos reuni uns primeiros poemas e um amigo me levou à mesa de um decano destacado de nossa poesia. Ao ler aquelas não mais do que umas 20 páginas me falou de O guardador de rebanhos, do Alberto Caeiro. Eu fiquei caladinho, passando a impressão de ser tímido, porque jamais havia lido Fernando Pessoa. A minha infância foi marcada pela leitura de José de Alencar, Dostoievski,  Shakespeare e Milton. O poeta cearense que leu meus poemas se chama Francisco Carvalho, de quem me aproximei muito posteriormente, mas até hoje acho que ele foi não propriamente generoso, mas sim astuto, ao me indicar um caminho. Sabia que eu sairia daquele nosso encontro à procura de todos os livros de Pessoa. De qualquer modo, permaneceu uma inquietude: como posso sofrer a influência de quem jamais li? Um dia compreendi que a razão disto tem menos a ver com o ambiente limitado de quem se dedica a identificar influências do que com o fato de que a vida se encontra definida por um vultoso e diverso traço de afinidades com o que nos é visível ou invisível, não importa. Aos poucos fui aprendendo que as mínimas experiências de vida são postas na panela da criação como ingredientes que sabem ser tão indispensáveis ao prato final quanto os grãos de conhecimento, as pedras de referência, o diapasão, as hortaliças do mistério, os truques da memória.

RSCL | Mas algo o perturbava de um modo que até aqui me passa a impressão de que em seu momento você não sabia identificar.

FM | É verdade. Fui apanhado por algo maior do que eu, naquele instante, dava conta ao menos de entender. Não se trata de destino, de fatalidade. Creio que é uma espécie de disposição para o crime, de reciprocidade de sinais entre causa e efeito. De algum modo eu estava ali prontinho para ser aquele menino que não se encaixava em parte alguma de sua vida. Eu vivia aquele momento em que uma janela não significa o espaço por onde algo entra, mas sim a chance de escapar. E por vários anos eu tratei de escapar e escapar e escapar… Demorou até eu compreender que a janela poderia funcionar de outro modo. Eu me excedi em ser fugitivo de muitas coisas em minha vida.

RSCL | Eu queria retornar à sua família, os seus pontos de fuga, se assim os podemos chamar, são referidos como umas zonas incômodas que necessitavam ajuste ou simplesmente exclusão de um mapa existencial. Como você distinguia o papel que ocupavam aí o pai, a mãe, a avó, o irmão, quem mais?

FM | Naquele momento eu queria apenas ir para o mais longe possível. O único que consegui foi abafar a atuação externa de um espectro que seguiu pulsando. Os tempos se deram em uma cascata de vertigens. Havia uma religiosidade informal na família, disfarçada pela aceitação tácita do tema. Eu fui semanalmente levado a duas igrejas por minha avó. A minha memória se atém às quermesses de uma - ela quase sempre arrematava um frango assado envolto em celofane azul -, incluindo seu trágico incêndio. Então passamos à outra igreja, para mim sem muito atrativo. Recordo que ela recebeu ocasionalmente a visita de um bispo, e que tive que beijar-lhe o anel. Esta cena de algum modo redigiu em meu espírito uma bula antepapal (risos). Meu irmão vivia em seu mundo de ausência perene. Era algo indecifrável para a minha infância. Eu queria tocar-lhe e que reagisse como qualquer pessoa. Eu talvez não entendesse o que aquele silêncio completo significasse. Minha mãe era devotada a ele, era seu sacerdócio. Meu pai era uma figura ausente no ambiente doméstico, aos meus olhos, eu me lembro dele ouvindo sua música, quando surgiu a televisão nos aproximamos muito, fascinados pelo espectro em si, mas lembro bem que ele me levava ao cinema, nas manhãs de domingo eu me deliciava com filmes como os de Carlitos, mas especialmente com O gordo e o magro. Já a avó, ela era a coluna central, o pé direito, quem garantia o fiel de uma família que deu de cara com a morte do pai quando o filho mais velho tinha apenas 18 anos. Lilia - era seu nome - ficou viúva muito jovem, de um comerciante bem sucedido e muito mais velho do que ela. tinha diante de si um desafio enorme. Esta foi a minha avó-mãe.

RSCL | O que acho mais interessante em nossa conversa é que ao responder você não se limita a encerrar o assunto, pelo contrário, está sempre abrindo novas perspectivas. A sua poesia também é assim. Você cria um mundo alucinante em que se misturam sonho e vigília. As drogas alguma vez estiveram presentes em sua vida?

FM | Eu jamais tive problema moral com as drogas. Meu dilema com a maconha é que ela me deixava letárgico. Eu precisava calibrar a voltagem de meus sentidos e a maconha me deixava preguiçoso. Caso eu cheirasse cocaína, o efeito seria inverso e igualmente danoso. O álcool permitia então concentrar e equilibrar a energia necessária à criação. O poeta Enrique Molina, que também pintava, disse que uma distinção entre ambas - a poesia e a pintura - é que o pintor, ao contrário do poeta, pode pintar o dia inteiro. A energia acumulada em função da criação do poema se esvai de um jato, e nos deixa momentaneamente vazios. Eu tinha muita dificuldade em me concentrar, de modo que houve uma época em que eu necessitava de uma ajuda neste sentido, o de acumular em meu íntimo a soma dos seis sentidos, a carga total de sua apreensão do mundo.

RSCL | De qualquer modo, é muito difícil ter acesso ao frasco de sua essência. Talvez ele se esconda por trás dessas prateleiras tão múltiplas que vemos ao adentrar a sua oficina de criação. Quem, por exemplo, é a mulher que fala em você?

FM | Não chega a ser um truque, não há intencionalidade nisto. Tocaste bem a escala mais alta de meus sentidos, não a mulher, propriamente, mas o que está por trás do feminino e que nos escapa, ao homem e à mulher, de um modo desastroso. Um dia alguém me disse que não há como fugir de uma coisa na vida: sempre, em algum momento, acabamos por precisar irremediavelmente do outro. E me disse como se aí radicasse alguma tragédia. Mas esta é a maravilha da vida. A mulher que fala em mim, e não através de mim, é a voz de uma compreensão desse falseamento da essência do ser. Não se trata de uma evocação, seria uma visão simplória e marcada por certo machismo. Tampouco é uma encarnação, porque não há transferência de mirador, eu não empresto meu olhar à mulher. O que me atrai é esta confiança em uma irmanação de sentidos, uma alquimia da percepção de que o mundo não se dá em isolado senão como mercado ou usufruto religioso.A mulher que fala em mim é a única que tem acesso a esse frasco de essências, assim mesmo, no plural, sem truques, insisto. Eu não tenho interesse no criador como um intelectual. São dois planos distintos, que se encontram como um acidente geográfico. Uma vez publiquei um livro de ensaios chamado A inocência de pensar e uma resenha, após elogiar o livro, disse ser inaceitável que o pensamento fosse inocente. O mundo acadêmico está tão habituado a justificar ou contradizer um pensamento já existente que por vezes esquece o frasco de essência do mesmo. Isto nos leva a Goya e sua entranhável compreensão de que "os sonhos da razão produzem monstros".

RSCL | Às vezes eu acho que você é um pensador que, ao procurar algo para se expressar, encontrou a poesia por acidente.

FM | É uma perspectiva fascinante. Tenho por autores que sempre me inquietaram a mesma impressão, independente de serem poetas ou não. Penso em Milan Kundera, Francis Bacon, Duke Ellington, Jorge Luis Borges, Clarice Lispector, Keith Jarrett… Impossível estar com eles sem entender o quanto há de expressão, digamos, filosófica em sua criação. Ao mesmo tempo, dá-nos uma sensação de vazio o que se exibe como produto da arte contemporânea, justamente por esta ausência de um pensamento. Houve um momento talvez pior, em que essa figura do pensador era entendida como um libelo ideológico. Revestir a criação artística de um preceito ideológico ou de um roteiro de entretenimento, acaba por fazer com que o monstro criado se volte contra seu fabricante e cuspa em nós, como o faz a arte em nossos dias, as cinzas de sua angústia. O século XXI se encontra em uma espécie de sinuca de bico, ainda sem aceitar o fato de que os dilemas de sua engrenagem (não importa se na religião, na ciência, na arte) são frutos não do acaso, mas sim de desvios de jogo, ou mais claramente: são resultados da prevaricação da religião, da ciência, da arte, em relação ao mercado.

RSCL | Criação e pensamento se irmanam…

FM | Este é o ponto. Perdemos a ideia de que o criador é parte do mundo. Estou lendo a correspondência ativa do García Lorca a diversos amigos, escritores, editores, diretores de teatro, ele sempre a manifestar preocupações em relação à presença de sua arte em seu tempo. Vivemos em uma época em que a correspondência - em todos os sentidos, não apenas na troca de cartas - se converteu em algo dispensável ou então marcado por um carteado de troca de interesses. O homem então teria criado um alto padrão tecnológico de comunicação para não comunicar-se mais consigo mesmo e o outro que o definiria em essência? O que chamamos hoje de comunicação é uma imposição de valores e não uma troca de percepções do mundo. Este é o tablado em que viemos dar, onde quanto mais perto mais longe. O homem evita reconhecer-se em si mesmo. Não importa a extensão da tragédia humana. 




Renata Sodré Costa Leite é psicóloga e reside em São Paulo. Esta entrevista foi realizada através do chat do Gmail, nos primeiros dias de abril de 2015. Desenho de FM realizado por Adriel Contieri. Reproduzimos ainda capa do livro A vida inesperada, sugerindo ao leitor visitar nossa loja virtual: http://abraxasloja.blogspot.com.br/. Contato: renata_costaleite@hotmail.com.

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