quinta-feira, 9 de outubro de 2014

PALAVRAS PRELIMINARES | Entrevista a Jorge Ariel Madrazo



JORGE ARIEL MADRAZO Comienzo asombrándome por tu entrega a un apasionado y doble andarivel. En efecto, junto a tu quehacer creativo cumples una inusual tarea de difusión y crítica de otros poetas: brasileños y, en mayor medida aun, hispano-hablantes. Muchos de ellos, mal conocidos inclusive en nuestra lengua. Un puente inter-cultural que abarca libros y espacios como Agulha y Banda Hispánica. Desusado, además, por tu conocimiento de esas poéticas y tu voltaje polémico.

FLORIANO MARTINS O mais importante aqui é manter o ego no lugar, não deixá-lo de todo solto. Sempre que posso, venho chamado a atenção para nomes essenciais, na cultura de meu país, e também em toda a América Hispânica, e creio que assim vamos contribuindo para a difusão de suas obras. O que estamos tentando fazer na Agulha, Claudio Willer e eu, é não somente recuperar alguns autores do passado, mas, sobretudo, revelar algumas novas fontes de reflexão. Estamos carentes de reflexão, de apostas mais profundas em buscar soluções para velhos problemas numa margem e outra da América Latina. Já a Banda Hispânica, nela o que conta é sistematizar uma zona de pesquisa sem privilégios de qualquer ordem. A intenção é formatar um imenso banco de dados, disponível para pesquisa em área acadêmica ou artística, um lugar de encontro onde essa cultura múltipla possa se expressar livre das demanda casuística que já bem conhecemos. Como vês, nada de intencionalmente polêmico. São áreas esvaziadas e que necessitam ser recuperadas. E te digo que estou apenas começando. Há uma grande rede de conexões se preparando para um envolvimento maior, uma difusão mais ampla e sólida.

JAM En tu libro O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da América latina (2001) te ocupas de más de una docena de autores, y rechazas cualquier fosilización del Surrealismo como mera escuela o grupo históricamente datado. ¿Qué rasgos permiten hoy, entonces, tal adscripción? ¿Fidelidad a la fascinante utopía de borrar las fronteras entre arte y vida, o incluso “cambiar la vida”? ¿El poeta -y el poema- como ejes de una subversiva alma en llamas individual-colectiva? ¿La priorización del automatismo psíquico? ¿Perseguir el punto donde se unan real e imaginario, sueño y vigilia, razón y locura?

FM Em carta remetida a Osiris Troiani, disse Aldo Pellegrini que “el surrealismo no es la creación de un solo hombre y en su formación han confluído todas las corrientes que señalan la insurrección esencial del hombre del siglo XX”. Naturalmente que essa insurreição requer uma fidelidade a si mesmo – a fidelidade ao outro é um sofisma cristão – e o homem é livre para cometer suas contradições. O que se passa com o Surrealismo é que parte de uma aposta muito profunda e ampla onde o dogma pode levar a certos prejuízos ou riscos. Como apagar as fronteiras entre arte e vida hoje? Como mudar a vida em meio a essa dinâmica estática que rege nossa época? É possível como sempre o foi: na fluidez solitária e silenciosa de uma obsessão. O anúncio de qualquer coisa sempre privilegiou o superficial, o leviano. A comunicação de massas não passa de customização de massas. Com isto percebemos que a melhor maneira de ser surrealista é recusar-lhe o dogma. As experiências com sonho hipnótico em Robert Desnos de alguma maneira se entrelaçam com a busca de iluminação em René Daumal, e penso que os dois casos podem ser aqui lembrados por um único motivo consistente: a fidelidade a si mesmo. Esta me parece a maior contribuição do Surrealismo: a afirmação insubornável do mais íntimo em nós, a grande convulsão do ser. Não é preciso tirar carteira de clube para isto, ou restringir-se a um tempo dado, histórico.

JAM ¿Es válido llamar surrealistas, sin reservas, a poetas inclusive de la relevancia de un Enrique Molina, cofundador con Pellegrini de A partir de Cero, que reconoció con fervor la impronta surrealista pero reticente -salvo quizás en tramos de Amantes Antípodas y Las Bellas Furias- a la alogicidad y desenfreno asociativo del Surrealismo (distanciamiento más acentuado aun, creo, en Olga Orozco, por su parte más cercana al gnosticismo y a la nostalgia de un absoluto religioso)? ¿Y qué pasaría con los poetas cuya obra mayoritaria se alejó de esta corriente? ¿O los que se amoldaron al sistema? ¿Por qué rechazar las expresiones para-surrealismo, afin al surrealismo, etc?

FM Aldo Pellegrini era possuidor dessa mescla de visão e revelação que somente cabe aos grandes espíritos. É admirável esse momento na história de nosso continente em que se pode contar com um antagonismo confluente da ordem do que regiam Pellegrini e Raúl Gustavo Aguirre. Creio que devemos considerar do Surrealismo, em suas origens, a inúmera possibilidade de expansão. Lamentavelmente no Brasil havia uma presunção em curso que impedia perceber a ideia central já oferecida por Lautréamont de uma poesia feita por todos. O gnosticismo de Olga Orozco ou o orfeísmo de Rosamel del Valle devem ser considerados como identificações valiosas. Definem-se por uma liberdade intensa e aportam com imagens surpreendentes. As religiões sempre possuíram um caráter restritivo, no que difere o sentido do religioso. Ainda hoje cabem cuidados para que o Surrealismo não seja confundido com uma doutrina. As denominações aproximativas que sugeres são quimicamente inaceitáveis. Mas não há um sistema surrealista que se imponha como a desejada escola cultuada por alguns equívocos. Cabe deixar-se tomar por essa fúria valiosa do contato de realidades à volta, a maneira como estou dentro e fora do mundo.

JAM ¿Cabrá rescatar, como postula el poeta español Angel Pariente en el diálogo que transcribes en O Começo da busca, que el Surrealismo sería en esencia libertad y contradicción, y querer acotarlo es vano afán escolástico, o que bien puede hallarse en ciertas etapas de un poeta y ausente en otras? ¿Y sería surrealista sólo en esas obras? ¿Ello no invalida, en tales casos, su inclusión como “poetas surrealistas”?

FM Ángel Pariente é um estudioso sério do Surrealismo e sua antologia publicada na Espanha é um momento admirável de busca de integração entre as duas margens do Atlântico, Espanha e América Hispânica. Tem minha completa admiração por isto. Entende que o fogo surrealista não estava fadado a queimar, mas antes a iluminar. Foi Artaud exatamente a dizer que “o surrealismo é antes de tudo um estado de ânimo”, e não há como por em dúvida o estado de ânimo de um poeta como Artaud. Há uma presença do Surrealismo na obra de um poeta como o chileno Enrique Gómez-Correa que vai além de qualquer declaração do próprio poeta em sua defesa.

JAM ¿Qué opinas de la observación de Louis Aragon, para la entrevista de F. Cremiéux en 1963: “Se tiene la idea equivocada de considerar al Surrealismo sólo en función de una de sus actividades experimentales, a la que habíamos dado el nombre de escritura automática”, la que a su juicio sería uno entre otros motores de arranque de las grandes “cacerías interiores”?

FM Breton disse em 1952, a respeito de Aragon, que “o único perigo que corre é seu grande desejo de agradar”. Sempre achei curiosa esta observação e confesso que me levou a não considerar muito os ditos de Aragon. Percebo agora que era mais dado a declarações coletivas do que pessoais. Mesmo sua poesia da juventude surrealista não possui grande substância – apesar da rara beleza de um poema como Licantropia contemporânea. No entanto, Aragon está correto: o Surrealismo propôs uma abrangência inabarcável e teve como resultado o esfatiar-se produzido por aplicadas restrições a essa amplitude.

JAM En el puzzle llamado Latinoamérica impera el desconocimiento sobre nuestras culturas y potencialidades. Hasta especialistas como Saúl Yurkievich practicarían recortes erróneos, según dices en “La modernidad de la poesía en Hispanoamérica”. Pero a la vista de nombres y movimientos renovadores en Brasil y que traspasaron con fuerza sus fronteras, ¿por qué afirmas que, “salvo excepciones, la tradición poética brasileña se vincula a un formalismo inocuo y exacerbado?”. ¿O en tu diálogo con el poeta Harold Alvarado Tenorio: “En Brasil padecemos de una miseria cultural de la que todos somos cómplices?”

FM As declarações atendem a dois momentos específicos, ainda que confluentes. Se somarmos todos os recortes, digamos, estéticos da poesia brasileira teremos uma presença marcante do que chamo de esvaziamento de discurso, lugar onde a forma importa mais que o fundo, e raramente se verifica a afirmação pretensa de uma verdade, o postulado de uma inquietude existencial etc. Tem-se uma instância decorativa. E me lembra aqui uma afirmação do Roberto Piva, em 1964, que então se manifestava “contra a inibição de consciência da poesia oficial brasileira a serviço do instinto de morte (repressão)”, ou seja, a poesia se mostrando enclausurada pelo que Aldo Pellegrini chamava de “círculo muerto de las posibilidades gramaticales, semánticas o sonoras”. A miséria cultural aludida em outra ocasião refere-se à nossa cegueira para o que se passa fora, no sentido de sairmos em busca de algo. Aqui se encaixa aquela distinção observada por Octavio Paz entre fazer a história ou sofrê-la. Quando situo a existência de uma cumplicidade é porque observo, inclusive em conversa com muitos escritores, sobretudo os que se dizem poetas, que essa “inibição da consciência” de que falava o Piva tornou-se uma consciência dirigida, que atende a conveniências e nada mais. Há algo mais miserável do que isto? Particularizo o assunto brasileiro, mas cabe aqui uma menção ao que chamo de visão equivocada em Saúl Yurkievich. Por um lado propõe uma leitura das origens da poesia latino-americana deixando de fora o Brasil; por outro, recai no lugar-comum de utilizar-se levianamente de um cânone recorrente, falho em aspectos ligados a leituras cronológicas, éticas e estéticas.

JAM Gilberto Freyre, Lins do Rego, Jorge de Lima, Drummond, Mario y Oswald de Andrade y el “Tupy or not tupy”, el “Verde-amarelismo”, el “Luso-tropicalismo”, Portinari, Glauber Rocha… ¿No hay en Brasil un frecuente interrogarse por las raíces de la identidad, una búsqueda de lo propio y/o popular en los lenguajes literario, pictórico, fílmico, musical? ¿Cómo te ubicas en relación a esto?

FM Jamais senti necessidade alguma de me afirmar pelo nacional, de buscar nas entranhas de minha criação um caráter nacional. A discussão freqüente em minha poesia do estar no mundo encontra-se ligada mais aos espaços interiores do ser. Não estou bem certo se a América de um Allen Ginsberg, por exemplo, está ligada especificamente à realidade estadunidense ou se à veemente indignação do poeta em relação à condição humana. Me parece que a segunda opção seria mais fiel à poesia. A afirmação do nacional já extrapolou todos os limites do aceitável em sua relação com a arte. O século XX foi pródigo em diversas formas de fascismo. Em tua pergunta destaca-se o verde-amarelismo, em cujo manifesto, datado de 1929, se falava em “liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder”, em contradição com a aposta integralista de alguns de seus firmantes. Tomava-se então o índio como símbolo nacional, “justamente porque ele significa a ausência de preconceito”, mas simplesmente não havia mais índio, mesmo nas primeiras décadas do século passado o índio já se encontrava em pleno processo violento de folclorização. Não espelha a realidade, mas antes um falseamento dela. A presença indígena, a consciência de uma nação indígena, tudo isso já fora liquidado, e a coragem maior, mais decisiva, era justamente a de realçar essa chacina. Para mim o “Tupy or not Tupy” não passa de um trocadilho infame, desses que desgraçadamente se ramificaram por toda a cultura brasileira, tanto é que o próprio Oswald de Andrade, que o cunhou, no Manifesto da poesia pau-brasil (1924) defendia uma brasilidade “sem ontologia”. Não te soa contraditório? Pois nunca ninguém deu pela conta entre nós. Em uma carta dirigida ao cineasta Cacá Diegues, em 1971, Glauber Rocha dizia o seguinte: “Oswald estava metido com os partidos liberais vigaristas e a única coisa política conseqüente que deu a Semana [de Arte Moderna] foi o integralismo”. Glauber comentava particularidades dos anos 20, de uma casta intelectual ainda hoje bastante influente em nossa cultura: “se comem uns aos outros, fazem tráficos de prestígio, informação, concorrência social e cultural, traem as ideias do núcleo biológico fundamental e se amesquinham na transação complacente com o regime”. Não há nada mais atual em nossa realidade brasileira.

JAM Es muy interesante tu observación, y los planteos de Claudio Willer, de que un contradiscurso enfrentado al oficial-canónico implica más que el sarcasmo o la distorsión. Si he entendido bien, no se trataría de un simple binarismo (discurso-contradiscurso), sino de una interacción dentro de una red de nuevos códigos, y de intervenir en el complejo mosaico social-cultural. Si es así, ¿cómo podría darse en el Brasil de hoy?

FM O cânone funda uma falsa identidade. Sua rejeição alimenta-se dessa falsidade. Não percebendo isto, ficamos a administrar o que está à direita ou à esquerda de um determinismo que se impõe indiscutível. Ora, a experiência humana multiplica-se em tantos fenômenos a ponto de anular a fenomenologia em sua perspectiva científica. Agora, essa ambientação de uma interferência, não a sentimos jamais, não se dá no mesmo plano de um falseamento do real, como operado pela mídia, por exemplo. Mas para que serve o dinheiro e no que tem sido utilizado? Estamos a fabricar cânones de interesses privados. A mesma política de sempre. O Brasil tem uma percepção mínima do que se passa na esfera virtual. Nossa ideia de intervenção é no sentido de preparar terreno para o futuro. Aos poucos estamos nos convertendo na maior rede nacional de produção cultural na Internet. Mesmo aí rejeitamos o cânone, espécie de mito de ocasião, e diante de nós o maior de todos os obstáculos: celebrar bodas entre essas duas mídias: a impressa e a virtual.

JAM ¿A cuáles autores de la poesía brasileña pasada o contemporánea te sientes más ligado, más allá de líneas estéticas? ¿Y por qué?

FM Ainda em garoto lia mais a narrativa de José de Alencar do que propriamente nossos poetas. Em casa meu pai ouvia muita música brasileira e me levava a ver filmes com freqüência. Claro que tudo isto coincidia com a leitura de livros, conversas com amigos etc. Os dois poetas brasileiros que primeiro me chamam a atenção são Ferreira Gullar e Carlos Nejar, mas isto em meio a uma adolescência onde era muito forte o convívio com a prosa (Sade, Dostoievski), o teatro (Ionesco, Weiss, Shakespeare), as artes plásticas (Bosch, Brueghel, Goya) e a música pop (Frank Zappa, Rolling Stones, Led Zeppelin). Contudo, há um tempo ligado a incansáveis leituras, freqüentado por inúmeros poetas. Através dessas visitações é que vamos tecendo uma singularidade, que me parece ser algo importante na vida de um artista. Muito me interessa a poesia de um Jorge de Lima ou de um José Santiago Naud, pela vertigem barroca e a vertente surrealista. É um dos raros momentos em que as encontramos juntas em nossa tradição lírica, o que se pode ver também em minha poesia. Mas sou um poeta dado ao trágico, a acentuar a dor, a chafurdar no sofrimento para ver o quanto resiste. E a tradição poética brasileira é mais decorativa – pensemos no peso impressionante do Parnasianismo até os dias de hoje –, quando não pende para um lirismo mais adocicado, de pequenas paixões frustradas ou ânsias amorosas reveladas por entre véus.

JAM ¿Cómo entiendes el misterio y la magia poéticos? ¿Crees que palpite en igual grado en la manzana que tapa, o tacha, el rostro de un hombre ataviado con sombrero de copa -para evocar el célebre cuadro de Magritte-, como en la aparentemente nada misteriosa piedra en medio del camino de Drummond?

FM Paul Nougé já observou, a respeito de Magritte, que “una constante meditación crítica sobre las relaciones del mundo exterior con el hombre, en la forma dialéctica en donde el hombre y el mundo exterior constituyen los términos en perpetuo devenir, ha llevado esta pintura a la unidad viva y a la expresión eficaz”. A pintura de Magritte e o poema de Drummond hoje se encontram convertidos em ícones, naturalmente repletos de excessos de leitura, do oportunismo à idealização. Não são bons exemplos nem para a magia nem para o mistério. A peça de Magritte converteu-se em uma fonte de lucros para a indústria da propaganda (aí incluindo o cinema). A de Drummond dilacera-se entre leituras de menor influência. Talvez originariamente as duas tenham sido obras de um ouvido interno, porém ditadas pela entrega ou pela busca? Aí temos a distinção entre magia e mistério. Aliás, Magritte já dizia que o mistério “'é absolutamente necessário para que exista o real”. Não me parece que Drummond tenha recorrido ao mistério em sua poética. Entregou-se por completo em cada poema, crisol de suas expectativas, sim, mas distanciando-se da ideia de assumi-lo. Me parece que há um abismo intencional entre ser e obra, um racionalismo que o aproxima mais de Valéry, por exemplo. Ainda que tivesse em Verlaine uma clara fonte de identificação.

JAM También trabajas el collage. ¿Cuáles son tus relaciones con la imagen visual? ¿Cuáles sus lazos con el hechizo onírico? ¿Cómo juega esto en tu poesía y tu vida?

FM Não compartilho a ideia de segmentações estéticas. Isto quer dizer que não vejo diferença alguma entre meus poemas, collages, ensaios. A menor freqüência de collages se dá em função de uma exigência maior no plano ensaístico, onde tenho que abranger uma área muito extensa (tradução, edição, conferências). No Brasil não temos uma tradição nessa área de collages. Há casos isolados – Jorge de Lima, Tereza d'Amico, Sérgio Lima –, compreendidos justamente pela recusa de toda uma casta intelectual a admitir a presença do Surrealismo em nossa cultura. Há dois entendimentos que se distanciam entre si em relação à imagem. Fujamos dos lugares-comuns. A imagem é uma bifurcação de interesses, como sugere a propaganda, ou então uma afirmação de novas perspectivas existenciais. Não posso mais falar em “feitiço onírico”, como sugeres, porque vivemos em uma época de feitiços construídos, onde nos arrastamos sofregamente a caminho de uma falsa ideia de nós mesmos.

JAM En tu poema “Tratados de la sombra” aludes al “espectáculo de nuestras ruinas”, escenario “donde / el hombre actúa como el gusano de la propia especie”. En “A outra ponta do homem” dices: “¿De qué muere al final un hombre? / Sufre con sus animales espantosos, / escrituras encrespadas, / viscosas/, pobre mimo de la propia memoria…”. En “A la Sombra del Origen”: “¿Quiénes somos? ¿Los magníficos restos de la especie, / sacerdotes de ruinas, vastas y frustrantes?”. Y en otros poemas: “Lo que veo en el jardín son detalles del horror…”, “¿Con quién hablas en tu camino hacia el abismo…?”. Crepitan en tus versos palabras como cenizas, muerte, dolor, alma, ruinas, cadáver, vacío, equívocos, sin olvidar Dios… Por otro lado, tu Natureza Morta exhibe una muy ambiciosa estructura en forma de tríptico, forma que como señalaste hasta remite al Dante, y yuxtapone poemas y estrofas de gran intensidad encantatoria y variedad incluyendo reminiscencias salmódicas o rapsódicas. ¿No ves en tu obra rasgos románticos y metafísicos, en la familia de algún raro como José Antonio Ramos Sucre?

FM A leitura de Ramos Sucre foi algo impressionante para mim e acho tua referência fascinante. Há um recorte entre o mundano e o metafísico neste poeta que o aproxima de uma poética que eu já vinha desenhando, sobretudo graças a uma mescla de convivência com textos teatrais e tratados filosóficos. É comum em Ramos Sucre o personagem saltar de uma cena trivial em uma taberna, por exemplo, para o centro abissal de uma discussão metafísica, por ele apenas sugerida. É um poeta impressionante e me parece que ainda não compreendido de todo, sobretudo nessa vertente que mencionas. Possui obra mais densa do que Tablada, Girondo, Eguren e Huidobro, para citar aqueles predecessores do Surrealismo apontados por Stefan Baciu. Até onde não me engano, minha poesia estrutura-se em uma complexidade que soma lirismo e metafísica, que põe o arquétipo a dialogar com as mais obscuras aparições do cotidiano. Deus é nossa grande fonte de equívocos e descobertas. Está presente em minha poesia mais pelos abusos conceituais do que propriamente por uma reverência. Tens razão quanto ao tríptico, forma a que recorro com curiosa permanência em meus escritos, ensaios e poesia. O dobrado em três como uma abertura para novas percepções, não apenas como tábulas soltas, mas trazendo já em si a chave para uma recorrência. O tríptico tem sido recurso plástico, mais ligado à pintura, pensemos em Bosch ou Francis Bacon, que praticamente constituiu sua obra dentro dessa opção ou obsessão. Mas é claro que o recurso a esses grandes painéis segue o curso de uma busca metafísica, desde que aclarado que a transcendência só se realiza na imanência, e vice-versa.

 [2003]

[Entrevista concedida a Jorge Ariel Madrazo. Originalmente publicada em Poéticas. Buenos Aires, 2003. Integra o livro O hábito do abismo (Entrevistas com Floriano Martins), de Márcio Simões (ARC Edições: Fortaleza, 2013).]




Nenhum comentário:

Postar um comentário